Mosaicos

Por Márcio Barros, em OPINIÃO

Mosaicos

20 de Janeiro de 2016 às 21:41

Numa noite adolescente da década de noventa, eu assistia à 94.9 FM com o meu panasonic devidamente  posicionado "no rec" (numa época em que se fazia isso) gravando o saudoso programa radio rock, quando uma música estranha me chama a atenção. Na verdade era uma melodia familiar: a de astronauta de mármore, do nenhum de nós. Só que na versão original em inglês e com arranjos bem mais interessantes. Ao final da execução o locutor anuncia: Star Man de David Bowie. Pronto, havia sido apresentado a um nome que não esqueceria nunca mais.

O certo é que já conhecia, sem o saber. Em meados dos anos 80, ainda criança, brincando nos longínquos terreiros da casa da avó, havia sempre um rádio ligado na 101.8, difusora de Picos. Nesses tempos, as programações de AM eram absurdamente mais democráticas que as de hoje. Rolava de tudo: De kraftwerk a Odair José, De Village People a Luis Gonzaga, De Agnaldo Timóteo a ... David Bowie.

 Mais ou menos no período em que "conheci" Bowie, meu professor de Literatura, Luis Romero, lê o poema obscuro e denso, The Raven, de Alan Poe, traduzido para o português pelo poeta Fernando Pessoa: Pronto, havia sido apresentado a um nome que não esqueceria nunca mais. 

Bem, de fato já conhecia e às vezes citava o batido verso "tudo vale a pena se a alma não é pequena", mas não sabia que era de Pessoa. Fui saber anos mais tarde. Inclusive, que na letra de Star Man há o verso: "Ele disse para não explodirmos, pois ele sabe que tudo vale a pena!" Provavelmente uma boa coincidência, mas o fato é que fui descobrindo com o passar do tempo que havia uma enorme semelhança entre os dois artistas, apesar de carreiras e propostas tão distintas.

Pessoa e Bowie tinham vidas "pessoais" irritantemente normais e tediosas como a maioria de nós. Mas, como a vida não basta nem é suficiente, criaram personas\heterônimos com os quais expandiam os limites de suas personalidades por exigência de seus talentos artísticos, que deles jorravam aos borbotões.  

Ziggy Stardust, Álvaro de Campos, Aladdin Sane e Bernardo Soares são aquilo que a arte exigia deles. Mas são, sobretudo, mosaicos deles próprios. Inúmeras pessoas dentro de uma só, como bem diz o poema de Pessoa: 

"vivem em nós, inúmeros;
se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar 
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo..."

Alguns desses personagens tinham vida própria e nem sempre se expressavam em concordância com o criador, como é o caso de Alberto Caeiro ou Thin White Duke. Mas sempre diziam coisas que tocavam\tocam multidões de pessoas. E eu sou uma dessas pessoas. Sempre acreditei no poder redentor da arte. E nesse sentido O Poeta e o Artista Pop são "mestres redentoristas".

Em Dezembro de 2015 ganhei do grande amigo, Raul, o ótimo livro "Fernando Pessoa" uma quase autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho. De cara foi inevitável a comparação com o Artista Inglês.  Em Janeiro de 2016, ainda mergulhado na leitura do livro, David Bowie morre. Foi um baque! Por mais que Ziggy grite "Você não está sozinho", sinto uma solidão ameaçadora como a imagem de um corvo batendo à janela no meio da madrugada. Como o aceno de Álvaro de Campos ao esteves na tabacaria. Como a constatação de que dessa forma segue o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada e de que não há nada que se possa fazer.

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