Na parada de ônibus

Por Leandro Maciel, em CONTOS

Na parada de ônibus

14 de Maio de 2020 às 17:18

“Esse maluco não para de olhar para mim! Não tira o olho da minha bunda”. Era verdade: um homem estava sentado no ponto de ônibus e não tirava os olhos de seu alvo. Não disfarçava. Fazia questão de ser ostensivo. Observava atentamente, sem piscar. Caso retornasse de sua quase hipnose, levaria algum tempo para se lembrar onde estava. Absorto, imaginava, projetava e planejava o que estava prestes a fazer.

 

Ela tentava sair do campo de visão. Evitava qualquer contato visual. Mas as esquivas eram inúteis: o homem acompanhava todo e qualquer movimento, não apenas com os olhos, mas também com a cabeça. Continuava sentado, mas torcia e retorcia o pescoço e o tronco, como se fosse uma câmera de segurança. Praticamente uma atração magnética, sempre com o olhar fixo à altura da cintura, à distância de um arranque de corrida.

 

O pavor era crescente. Percebia que estava suando, notava que a respiração ficava cada vez mais curta. Tinha a certeza que algo de muito ruim aconteceria em breve, caso não agisse rapidamente. Mas o que fazer? Gritar? Correr? Fingir calma e lhe dirigir a palavra, qualquer pergunta, olhando-o no olho? E se gaguejasse e demonstrasse medo?

 

Eram quase 22 horas e o local era isolado. Acabara de sair de uma prova longa e trabalhosa e suas caronas até o centro da cidade tinham faltado ao teste, preferindo fazer segunda chamada. “Logo hoje!”. Percebeu que eram as duas únicas pessoas no ponto de ônibus. Durante o dia havia muita gente indo e vindo. Mas naquele horário, a escuridão predominava e o local mais parecia um teatro escuro, iluminado apenas por um feixe direcionado a um ponto específico do palco. No caso, esse ponto era a parada de ônibus.

 

Acabava de perceber que não tinha para onde fugir. Ao contrário do que ocorre nas montagens, o foco de luz não a seguiria. À frente e atrás, havia dois matagais, cerrados como uma grande plantação de milho. À direita e à esquerda, lembrava o que havia, mas não conseguia ver nem o começo nem o final da rua. Em qualquer ponto além de onde estavam, a escuridão era impenetrável. Afastar-se significaria entrar desarmada em uma briga de facas no escuro. “O que será que existe dentro de um buraco negro? Fotografaram um recentemente...”. Voltou a si e ficou na dúvida se correr sem destino seria a melhor decisão. A angústia aumentava: “E se ele quebrar a lâmpada do poste??”.

 

Uma luz surgia na escuridão, vindo do lado esquerdo, acompanhada de uma sensação de alívio. “Um ônibus, graças a Deus!”. Nas suas contas, o último antes do corujão. Ao fazer o sinal com o braço, percebeu que o homem se levantou para a acompanhar. Percebeu então que ele não era alto nem baixo, forte nem fraco, gordo nem magro. Tinha, porém, porte suficiente para a dominar em uma luta corporal. O motorista não parou. O alívio deu lugar ao desespero. Calmamente, o homem se sentou e voltou a esperar. Observando-a, ritualmente acendeu um cigarro.

 

Em poucos minutos, surgiu um carro. Ao se aproximar, conseguiu observar que havia pessoas no banco de trás. “Tomara que não esteja cheio”, pensou. Eram estudantes. “De Direito ou de Medicina”, arrematou em silêncio. Estavam saindo da universidade, terminadas as últimas aulas da noite. Era quarta-feira, dia de futebol na TV. Ela não gosta de futebol, não entende a lógica dos rituais, dos ídolos, dos sacrifícios, dos templos e das reuniões duas ou três vezes por semana, como se fosse uma religião. Mas sabe que toda quarta à noite a rotina dos homens muda; ou melhor, a rotina é mantida. Notou que havia uma garota no carro e que em sua mão, fora da janela lateral traseira, pendia um copo meio vazio. “Hoje é dia de jogo. Estão indo para algum lugar assistir. As meninas, quando estão a fim de alguém, fingem gostar disso. Sinceramente...” Ninguém entendeu o pedido de socorro. Ou se alguém entendeu, ignorou. A estudante pediu carona, acenou, gesticulou, dirigiu-se para a rua como se fosse atravessá-la e abriu os braços. O carro passou direto. Enquanto ela fazia isso, seu observador se levantou ficou próximo dela, com se estivesse a pedir carona também. Esforço em vão: não houve carona e o homem se sentou novamente, de modo até tranquilo, cigarro na mão, como um felino que, à espreita da presa, recua o movimento de ataque e não demonstra qualquer pressa para o dar o bote certeiro.

 

A aflição aumenta; a respiração acelera, as pernas amolecem e ela percebe que seu joelho esquerdo ameaça dobrar. “Não! Não vou desmaiar aqui!”, é o que ela consegue entender no meio de seus pensamentos. Lembra-se de um programa de TV, em que um psiquiatra recomendava controlar a respiração em situações de tensão: contar até 10, levar o diafragma às máximas extensão e contração possíveis, mas com calma, para que pudesse puxar o ar o mais profunda e lentamente que se conseguisse, como se analisasse os aromas do ar que respirava. Fez o exercício e sentiu um agradável cheiro, misto de grama cortada e terra molhada pela chuva. Conseguiu se acalmar por um breve instante. Mas, mesmo sem olhar, sentia a presença de seu potencial algoz. Ele continuava lá.

 

Finalmente, surgiu um ônibus. Agora, sim, o último. Sem ver a cor, número ou placa, ela pediu para o motorista parar. “Quando chegar mais perto, eu vou para o meio da rua. Ou o ônibus para ou me atropela”. O condutor parou e ela embarcou sem olhar para trás. Sentia-se aliviada.

 

Embora não estivesse com calor, estava completamente suada. Cabelos colados à cabeça, gotículas na testa e no buço, blusa colada ao corpo, mãos encharcadas e pés deslizando nas sandálias. Não achou um lugar para sentar. Também não conseguiu sentar no piso, como chegou a cogitar. A única opção seria ir em pé mesmo, com um braço estendido para conseguir se segurar no apoio de teto. Não sabia mais onde estavam seus livros e se lembrou que não sabia para onde o ônibus ia.  Pelo menos, desceria em outro local mais movimentado, de modo a tomar outro. Recompôs-se do susto, percebeu que parou de suar, retomou as forças e decidiu perguntar para onde estava indo. Não viu qualquer rosto amigo, nem mesmo aquelas pessoas que, mesmo sem se conhecer ou saber o nome umas das outras, tomam o mesmo ônibus todos os dias e formam uma espécie de irmandade ao longo dos trajetos.

 

Olhou rapidamente para o outro lado e encontrou alguém familiar: o mesmo homem que a observava e que ela pensava ter deixado para trás. Estava a poucos passos de distância. Não conseguia identificar seu rosto, mas sabia que era ele, sentia que era ela, tinha certeza que era ele. O cheiro da grama cortada e da terra molhada reapareceu, mas agora era o cheiro do medo. Olhou novamente para conferir: era mesmo ele! Ela não conseguia fixar a vista em seu rosto; quando mirava era como se a imagem da face estivesse borrada. Na verdade, teve a impressão de que ele não tinha rosto, embora estivesse tudo lá: nariz, boca, testa, olhos... Não conseguia definir se tinha barba ou bigode. Mas uma coisa era certa: sentia o olhar, incisivo, determinado, sedento e fixo na sua cintura e em seus quadris. Ele não a olhava nos olhos. “Minha Nossa Senhora!”, foi a única coisa que conseguiu pinçar de seus pensamentos, novamente em fluxo alucinante.

 

Lembrou que, quando criança, seu pai a orientava a aprender alguma técnica de defesa pessoal. “Faça caratê, minha filha. Faça capoeira. Jogue futebol, aprenda a driblar. Faça qualquer coisa que possa ser útil para se proteger. Tem muita gente ruim por aí.” Ela nunca levou a sério e não se preocupou em aprender qualquer tipo de luta ou de esquiva Nunca pensou em ter arma de fogo, arma branca, spray de pimenta ou instrumento de choque. Nunca tinha sido assaltada, muito menos sofrido qualquer tipo de agressão física. Muitas de suas amigas e colegas de turma já tiveram experiências muito violentas. Algumas sabiam atirar e andavam armadas. Mas ela não. Devaneou por mais alguns longos segundos, lembrando de seu falecido pai, de seus conselhos e das vezes em que tarde da noite ele ia ao ponto de ônibus perto de sua casa, para a receber e a escoltar em segurança até em casa, após o trajeto de quase duas horas da universidade até o bairro onde morava, sempre sorrindo e contando algum acontecimento engraçado do dia. Sentia saudades. Naquele momento, naquele local e hora, ela não contava mais com essa opção. “Meu pai, me ajude!”.

 

Dentro do ônibus, o homem partiu em sua direção. “Lá vem ele!”. Captou a determinação e a agilidade do movimento; percebeu o olhar do gavião quando parte, na maior velocidade possível, no curto e rasante vôo de captura da presa. Sentiu-se pressionada contra o assento do ônibus. Sentia a respiração próxima à sua nuca. Sentia cheiro de álcool e cigarro. Mais do que isso, achava que o odor transmitia algo sujo, de alguém que carregava toda a imundície praticada ao longo da vida, que somente poderia ser limpa, se possível, com muita expiação, muita penitência, muito sacrifício. A sensação, mais do que medo, era de repugnância.

 

Sentiu-se novamente apertada na cintura e a mão do homem fazia menção de deslizar em seu corpo. Ele não dizia uma palavra. A sensação de frio subia ao longo de sua coluna. Sentia a adrenalina fluir, juntamente com todos os preparativos para a fuga iminente, tal qual o antílope quando foge do leão na savana. Gritou. Gritou com todas as suas forças: “SOCORRO!! SOCORRO!!”. Ninguém se moveu. Gritou novamente: “FOGO!! FOGO!! BOMBA!! BOMBA!!”. Mas não houve qualquer reação. Os passageiros continuavam imóveis, como se ela não estivesse ali. O motorista, o cobrador, o estudante, o fiscal, o vendedor, o idoso, o músico de rua, o cadeirante e o PM. Ninguém, ninguém se mexia. Focados em seus pensamentos e em tácita cumplicidade, seguiam inertes, embora alguns fizessem caretas ao ouvir os gritos.

 

Mesmo assim, continuava a gritar. Sem sucesso. O tarado a apertava ainda mais e tentava colocar a mão por dentro de sua calça. Tentava lutar. Tentava, mas percebia que quanto mais resistia, mais dominada ficava. Desse momento em diante, não ouvia mais sua voz. Esse estava completamente muda e seus gritos não geravam mais qualquer som. Era como se estivesse dentro de uma piscina. Por mais que se esforçasse, não conseguia emitir qualquer som. Contorcia-se, mexia-se, chutava, socava, mas a sensação de afogamento e de fraqueza era cada vez mais forte.

 

Finalmente, emergiu e conseguiu emitir um som, cujo volume era absurdamente baixo em relação ao esforço que fazia. Esse som a acordou. Abriu os olhos. “Era um pesadelo!” Em alguns segundos, recompôs-se mentalmente, localizou-se, lembrou-se onde e com quem estava. Cansada na cama, percebeu que seu companheiro estava acordado, embora deitado ao seu lado e nela encostado. Sem dizer qualquer palavra, ele parecia utilizar linguagem corporal para lhe propor sexo às 3 horas da manhã.

 

Ao perceber que estava sã e salva na escuridão de seu quarto, e convicta que, tal qual o pesadelo, teria que falar muito alto para se fazer ouvir e se fazer entender, gritou a plenos pulmões: “POR FAVOR, ME DEIXA DORMIR!!!”

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