Nunca profane o sagrado

Por Leandro Maciel, em CRÔNICA

Nunca profane o sagrado

06 de Abril de 2017 às 16:37

Madrugada de sábado para domingo. Quatro horas da manhã. Três amigos sentados e conversando calorosamente ao redor de uma mesa. Resistiam bravamente aos efeitos do álcool. Vinte e seis cervejas (das grandes) consumidas.
A reunião tinha começado por volta das sete horas da noite. Mais de dez pessoas, pelo menos cinco casais. Anfitriões felizes, convidados satisfeitos. Como é usual nessas ocasiões, mulheres para um lado e homens para o outro.
Regada à cerveja e alimentada por carnes na brasa, a conversa fluía: técnicas de churrasco, travessuras dos filhos, acontecimentos da semana, malbec ou cabernet sauvignon, política e políticos, viagens, Lava Jato, religião, Clinton ou Trump, Beatles ou Pink Floyd, Machado de Assis ou José de Alencar, Fausto ou Doutor Fausto, Ayrton Senna ou Nelson Piquet, Lula ou FHC, liberação do aborto e das drogas... Curiosamente, não se falava de futebol. Ambiente agradável, debate sadio.
Pouco a pouco, os presentes foram se retirando. Até que, lá pelas quatro da manhã, restaram o dono da casa e dois convidados.
O silêncio entre uma fala e outra ficava cada mais frequente e prolongado. O fim da reunião era iminente. Cada convidado esperando o outro tomar a iniciativa de ir embora. Se um se levantasse, o outro iria junto. No entanto, ninguém queria ser o primeiro, ou melhor, o penúltimo a sair.
De repente, a linha de segurança foi ultrapassada e o campo minado foi invadido. O tema proibido, evitado a noite toda, finalmente veio à tona:
- O Zico é uma fraude! Pé-frio, pipoqueiro. Overrated.
- O quê?! Zico está acima de todos. Empata com Pelé. Aliás, se tivesse jogado duas décadas antes, ele é que seria o atleta do século. Um exemplo de profissional, marido e pai de família. O verdadeiro rei.
Mais cerveja. Mais cerveja (já eram vinte e oito).
- Fraude é o vasquim! Três vezes rebaixado! Uma vergonha!
- Pelo contrário, o Vasco é o verdadeiro time do povo. Tem a história mais bela do futebol brasileiro: time de periferia que abriu as portas para os negros e os pobres, numa época em que o futebol era esporte de elite. Time de quem não é maria-vai-com-as-outras. O framengo sim, é que é uma empulhação, instrumento da Rede Globo para ganhar dinheiro e manipular o povo. Principalmente o do nordeste. Quem o segue ou é alienado ou é idiota.
- Alto lá! Não fale assim da Nação nem do Mais Querido! Time campeão do mundo, nunca rebaixado, com maior torcida do Brasil, mais acompanhado, mais visto e mais comentado, pelos torcedores e pelos “anti”.
- Time de bandido! Todo dia tem alguém preso com a camisa rubro-negra! Aliás, qual era mesmo o escudo pintado no daquele presidio em Manaus?
- E o Sérgio Cabral, é flamenguista, por acaso? Pelo jeito, no vasco só tem santo, a começar por Eurico Miranda e sua família...
Mais cerveja. Mais cerveja (trinta).
Cinco horas da manhã. A conversa adotou um tom que não havia até então. O que era gentileza virou aspereza. A cordialidade e a cortesia deram lugar à agressividade de todos os lados. Alteração de voz, rostos vermelhos, veias salientes, dedos em riste. Não bastava em enaltecer o time; o importante àquela altura era machucar, desfazer, menosprezar, como se a diminuição do adversário tornasse superior o oponente (e não o contrário). Curiosamente, a conversa engatou novamente. Mais cerveja (trinta e duas).
De repente, os copos se esvaziaram e a cerveja acabou. O anfitrião sumiu. Os convidados não o viram sair e não sabiam com exatidão há quanto tempo ele os tinha largado ao pé da churrasqueira, com os espetos ao alcance da mão e as últimas brasas se transformando em cinzas. Estavam sozinhos, sem o dono casa, situação tão clara quanto a colocação de uma vassoura atrás da porta, quando as visitas não querem ir embora. Olharam para as garrafas derrotadas. Foram ao freezer: apenas Coca Zero e Fanta Uva.
Entreolharam-se e se deram conta do óbvio. Não havia outra explicação: tocaram no assunto proibido, desrespeitaram o território alheio e agrediram o que lhe há de mais sagrado: a paixão pelo Clube de Regatas Flamengo.
Mesmo assim, continuaram na espera, na intenção de contornar o mal-estar e terminar a madrugada de um modo menos desagradável. Uma eternidade. De repente, o incômodo silêncio foi quebrado. De modo sincronizado, perguntaram um ao outro:
- Está pensando o mesmo que eu?
Depois de longos segundos, disseram simultaneamente:
- Ele foi buscar a arma!!
Ainda houve tempo para uma última reflexão:
- Cerveja, arma em casa, falar mal do Flamengo... Não dá certo!
- Ele foi buscar a arma!!
Nesse momento, ouviram passos vindos da casa. Passadas nervosas e apressadas.
- Corre!!
Correram. Correram como se corre atrás do último ônibus do dia (que acabara de sair da parada), tropeçaram no jardim, cruzaram a grama, caíram na rua, levantaram e passaram a correr de um modo que pensavam ser um zigue-zague, sem qualquer sincronia, na tentativa, conforme ensinado nos filmes de guerra, de sair da mira do sniper e dos disparos que viriam a qualquer momento. Cena hilária, captada pelos vigilantes que monitoravam as câmeras da rua e se divertiam com os ébrios corredores da madrugada.
Os amigos já iam longe, quando o anfitrião voltou ao local da casa onde os tinha deixado. Trazia as últimas quatro cervejas, especiais, que faziam parte de sua reserva de segurança, para momentos de emergência como esse, em que a conversa estava boa, mas a bebida era insuficiente.
Na verdade, tinha apenas subido ao seu quarto, localizado na parte oposta de onde estavam. Lá, abriu o frigobar e pegou as garrafas com gosto. Seus amigos lá embaixo as mereciam. Ainda se deteve um pouco para explicar para a esposa, que até então dormia tranquilamente, as razões de tão prolongada bebedeira e o fato de a prolongar mais ainda com a reserva de contingência, destinada a ocasiões importantes.
Ouvira com atenção tudo o que se falou sobre o Vasco. Por um átimo, chegou a questionar sua escolha infantil. Sem o admitir, queria voltar logo e continuar a conversa.
Ansioso, desceu rapidamente a escada, bebida em punho e sorriso no rosto. Para sua surpresa, deparou-se com as cadeiras vazias, as mesas sujas e a porta da rua aberta.
- Bando de maleducados. Saem sem avisar, não se despedem, deixam a bagunça aqui e sequer se dão ao trabalho de fechar a porta.
Ainda sem entender esse fim de noite, sentou-se, abriu mais uma cerveja, pegou seu smartphone, acessou o Google e foi consultar o ponto, talvez, mais importante de todos os assuntos conversados durante mais de 15 horas e mais de trinta cervejas: a lista dos vice campeões do campeonato carioca de futebol.
Madrugada de sábado para domingo. Quatro horas da manhã. Três amigos sentados e conversando calorosamente ao redor de uma mesa. Resistiam bravamente aos efeitos do álcool. Vinte e seis cervejas (das grandes) consumidas.
A reunião tinha começado por volta das sete horas da noite. Mais de dez pessoas, pelo menos cinco casais. Anfitriões felizes, convidados satisfeitos. Como é usual nessas ocasiões, mulheres para um lado e homens para o outro.
Regada à cerveja e alimentada por carnes na brasa, a conversa fluía: técnicas de churrasco, travessuras dos filhos, acontecimentos da semana, malbec ou cabernet sauvignon, política e políticos, viagens, Lava Jato, religião, Clinton ou Trump, Beatles ou Pink Floyd, Machado de Assis ou José de Alencar, Fausto ou Doutor Fausto, Ayrton Senna ou Nelson Piquet, Lula ou FHC, liberação do aborto e das drogas... Curiosamente, não se falava de futebol. Ambiente agradável, debate sadio.
Pouco a pouco, os presentes foram se retirando. Até que, lá pelas quatro da manhã, restaram o dono da casa e dois convidados.
O silêncio entre uma fala e outra ficava cada mais frequente e prolongado. O fim da reunião era iminente. Cada convidado esperando o outro tomar a iniciativa de ir embora. Se um se levantasse, o outro iria junto. No entanto, ninguém queria ser o primeiro, ou melhor, o penúltimo a sair.
De repente, a linha de segurança foi ultrapassada e o campo minado foi invadido. O tema proibido, evitado a noite toda, finalmente veio à tona:
- O Zico é uma fraude! Pé-frio, pipoqueiro. Overrated.
- O quê?! Zico está acima de todos. Empata com Pelé. Aliás, se tivesse jogado duas décadas antes, ele é que seria o atleta do século. Um exemplo de profissional, marido e pai de família. O verdadeiro rei.
Mais cerveja. Mais cerveja (já eram vinte e oito).
- Fraude é o vasquim! Três vezes rebaixado! Uma vergonha!
- Pelo contrário, o Vasco é o verdadeiro time do povo. Tem a história mais bela do futebol brasileiro: time de periferia que abriu as portas para os negros e os pobres, numa época em que o futebol era esporte de elite. Time de quem não é maria-vai-com-as-outras. O framengo sim, é que é uma empulhação, instrumento da Rede Globo para ganhar dinheiro e manipular o povo. Principalmente o do nordeste. Quem o segue ou é alienado ou é idiota.
- Alto lá! Não fale assim da Nação nem do Mais Querido! Time campeão do mundo, nunca rebaixado, com maior torcida do Brasil, mais acompanhado, mais visto e mais comentado, pelos torcedores e pelos “anti”.
- Time de bandido! Todo dia tem alguém preso com a camisa rubro-negra! Aliás, qual era mesmo o escudo pintado no daquele presidio em Manaus?
- E o Sérgio Cabral, é flamenguista, por acaso? Pelo jeito, no vasco só tem santo, a começar por Eurico Miranda e sua família...
Mais cerveja. Mais cerveja (trinta).
Cinco horas da manhã. A conversa adotou um tom que não havia até então. O que era gentileza virou aspereza. A cordialidade e a cortesia deram lugar à agressividade de todos os lados. Alteração de voz, rostos vermelhos, veias salientes, dedos em riste. Não bastava em enaltecer o time; o importante àquela altura era machucar, desfazer, menosprezar, como se a diminuição do adversário tornasse superior o oponente (e não o contrário). Curiosamente, a conversa engatou novamente. Mais cerveja (trinta e duas).
De repente, os copos se esvaziaram e a cerveja acabou. O anfitrião sumiu. Os convidados não o viram sair e não sabiam com exatidão há quanto tempo ele os tinha largado ao pé da churrasqueira, com os espetos ao alcance da mão e as últimas brasas se transformando em cinzas. Estavam sozinhos, sem o dono casa, situação tão clara quanto a colocação de uma vassoura atrás da porta, quando as visitas não querem ir embora. Olharam para as garrafas derrotadas. Foram ao freezer: apenas Coca Zero e Fanta Uva.
Entreolharam-se e se deram conta do óbvio. Não havia outra explicação: tocaram no assunto proibido, desrespeitaram o território alheio e agrediram o que lhe há de mais sagrado: a paixão pelo Clube de Regatas Flamengo.
Mesmo assim, continuaram na espera, na intenção de contornar o mal-estar e terminar a madrugada de um modo menos desagradável. Uma eternidade. De repente, o incômodo silêncio foi quebrado. De modo sincronizado, perguntaram um ao outro:
- Está pensando o mesmo que eu?
Depois de longos segundos, disseram simultaneamente:
- Ele foi buscar a arma!!
Ainda houve tempo para uma última reflexão:
- Cerveja, arma em casa, falar mal do Flamengo... Não dá certo!
- Ele foi buscar a arma!!
Nesse momento, ouviram passos vindos da casa. Passadas nervosas e apressadas.
- Corre!!
Correram. Correram como se corre atrás do último ônibus do dia (que acabara de sair da parada), tropeçaram no jardim, cruzaram a grama, caíram na rua, levantaram e passaram a correr de um modo que pensavam ser um zigue-zague, sem qualquer sincronia, na tentativa, conforme ensinado nos filmes de guerra, de sair da mira do sniper e dos disparos que viriam a qualquer momento. Cena hilária, captada pelos vigilantes que monitoravam as câmeras da rua e se divertiam com os ébrios corredores da madrugada.
Os amigos já iam longe, quando o anfitrião voltou ao local da casa onde os tinha deixado. Trazia as últimas quatro cervejas, especiais, que faziam parte de sua reserva de segurança, para momentos de emergência como esse, em que a conversa estava boa, mas a bebida era insuficiente.
Na verdade, tinha apenas subido ao seu quarto, localizado na parte oposta de onde estavam. Lá, abriu o frigobar e pegou as garrafas com gosto. Seus amigos lá embaixo as mereciam. Ainda se deteve um pouco para explicar para a esposa, que até então dormia tranquilamente, as razões de tão prolongada bebedeira e o fato de a prolongar mais ainda com a reserva de contingência, destinada a ocasiões importantes.
Ouvira com atenção tudo o que se falou sobre o Vasco. Por um átimo, chegou a questionar sua escolha infantil. Sem o admitir, queria voltar logo e continuar a conversa.
Ansioso, desceu rapidamente a escada, bebida em punho e sorriso no rosto. Para sua surpresa, deparou-se com as cadeiras vazias, as mesas sujas e a porta da rua aberta.
- Bando de maleducados. Saem sem avisar, não se despedem, deixam a bagunça aqui e sequer se dão ao trabalho de fechar a porta.
Ainda sem entender esse fim de noite, sentou-se, abriu mais uma cerveja, pegou seu smartphone, acessou o Google e foi consultar o ponto, talvez, mais importante de todos os assuntos conversados durante mais de 15 horas e mais de trinta cervejas: a lista dos vice campeões do campeonato carioca de futebol.
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