O Deus oculto do canto do corner

Por Raul Lopes, em LIVROS

O Deus oculto do canto do corner

25 de Março de 2024 às 23:55

Não é a primeira vez que trago ao Entrerios comentários da obra literária de um amigo e, da mesma forma que em situações anteriores, a proximidade que tenho do autor me permite identificar seus traços em cada página da obra. Explico melhor:

 

Pouco antes de “O Deus oculto do canto do corner” ser publicado, o autor, Milton Gustavo, já havia me alertado que estaria prestes a publicar um romance sobre a vida de um boxer, isso mesmo, um pugilista. Sempre soube que o Milton era (e é) um literata, um leitor voraz e um estudioso sobre a história do Direito e das ciências criminais, mas onde estaria o pugilista Milton? Porque escrever um livro sobre um lutador de boxe e seu treinador?

 

Para encontrar as respostas confesso que não as procurei no autor, não o questionei sobre tal interesse, acabei por encontrá-las ao me deparar com mais uma pergunta: porque não escrever sobre boxe?

 

Milton Gustavo passeia com requintes cinematográficos pelos diálogos, muitos deles despretensiosos ao estilo Tarantino ou Woody Allen, mas estes não servem apenas para entreter, os diálogos e o fluxo de pensamento do narrador nos permite a moldura da personalidade de cada personagem que, em toda obra, somos apresentados pelo filtro do narrador.

 

A apresentação de cada personagem pelo filtro do narrador me trouxe a possibilidade de duelar com a opinião exposta. O treinador só enxerga o que faz parte do seu mundo, por isso, traços de alguns personagens não são por ele percebidos e esta situação cria um clima de novela onde você acaba torcendo para ocorrência de um ou outro fato para observar a reação do nosso narrador.

 

O autor brinca com o enredo, abre sua caixa de ferramentas como escritor e de forma cirúrgica lança mão da dor, esperança, riso e brutalidade amparados por uma linguagem urbana e num cenário entre o Brasil e os EUA. Explora muito bem a narrativa e demonstra fôlego para romances, a obra é linear e não explora um turning point, por isso ganha em dinâmica e vence por nocaute.

 

A cadência final é muito bem construída, a escrita é alinhada a sensação premente de que a coisa está saindo do controle. Esse sentimento é muito bem traduzido nas últimas páginas, percebe-se uma certa tensão no ar, algo mal resolvido o que deixa ainda mais em suspenso como será o desfecho, mesmo diante da opção do autor em trabalhar com o anticlímax - marcado pela frustração das expectativas alimentadas ao longo da obra - como em A cartomante de Machado de Assis.

 

Milton Gustavo está em cada linha da obra, não me refiro a um ou outro personagem, me refiro a forma que se utiliza para escrever, percebe-se a perspicácia, a inteligência dos diálogos e a sensibilidade nas narrativas das relações humanas que é própria dos artistas.

 

Milton Gustavo tem alma de artista sua estreia na literatura está marcada com uma obra que entretém, diverte e convida o leitor a continuar lendo, é uma obra capaz de reconciliar um leitor adormecido com os livros.

 

E porque o boxe? Percebi que essa questão é a que menos importa.

Voltar