O Evangelho de Sunny War

Por Maísa Carvalho, em MÚSICA

O Evangelho de Sunny War

11 de Abril de 2024 às 01:53

Uma garota de Nashville empunha uma guitarra, canta em primeira pessoa e, ao fazê-lo, parece que une o que sabemos sobre a música americana do passado e do presente. Essa garota se chama Sydney Lyndella Ward. Agora, é conhecida apenas como Sunny War.  Atualmente, Sunny tem marcado presença em locais desejados, como a redação da Pitchfork e o palco da lendária cantora e guitarrista de blues Bonnie Raitt. Mas antes desse reconhecimento, War era uma espécie de nômade que vivia tocando nas largas e ensolaradas ruas de Los Angeles, fazendo versões improváveis e encantadoras de canções clássicas dos Beatles.

A Sunny War não é nova nesse meio musical. Começou a tocar guitarra aos sete anos de idade, e aos treze já tinha a sua própria banda. No entanto, a sua descoberta tem sido uma novidade para muita gente. Em 2023, quando escutei “Anarchist Gospel” pela primeira vez, o seu sétimo álbum de estúdio e até agora o trabalho mais maduro da cantora, fui apresentada a um tipo de garota que precisava ouvir. E ao ouvi-la, eu também fui apresentada àqueles tipos de sensações que ainda não foram definidas por uma palavra em português: senti saudade do que eu estava ainda conhecendo; era como se eu, ao mesmo tempo que adorava a música da Sunny, me sentia pesarosa por não tê-la conhecida antes - um sentimento parecido como quando os alemães falam em Sehnsucht (ter um anseio específico sobre alguma faceta da vida que está inacabada e imperfeita).

Foi uma descoberta e tanto. E quando comecei a compartilhar a música de Sunny aos amigos, a apresentei como uma espécie de Tracy Chapman de um mundo paralelo que resolveu fazer música punk misturada com folk e blues. Definitivamente, a voz da cantora é capaz de fisgar facilmente em um primeiro momento, pois é expressiva e emotiva, com uma qualidade adicional ligeiramente áspera que adiciona profundidade e autenticidade - aquela sujeirinha que a gente espera ouvir de um cantor de rock’n’roll. Em poucas faixas de “Anarchist Gospel” eu fui apresentada à capacidade de Sunny de transmitir emoção crua e vulnerabilidade através de sua música. É natural o poder da cantora de evocar uma conexão profunda. E para além da questão musical, Sunny nos conquista com uma espécie de timidez autêntica e do seu senso de humor sarcástico, inteligente e até um pouco cínico.

Como uma exímia fã de Jimi Hendrix, Sunny usa sua voz como um instrumento adicional em suas composições, explorando diferentes dinâmicas e tonalidades, como se a sua guitarra acompanhasse a sua voz - e vice-versa. Mas é inegável que este trabalho, “Anarchist Gospel”, é mais profundo do que explosivo; mais introvertido do que expansivo; mais contemplativo do que selvagem.

A cantora mergulhou na tradição do folk americano. "Anarchist Gospel" parece invocar os espíritos de Woody Guthrie, Lead Belly e dos ídolos de Sunny - como Gillian Welch, Elliot Smith e Chet Atkins -, comunicando uma fusão singular de desespero e esperança, revolta e redenção. O álbum, com suas cordas vibrantes e a voz crua de War, é um convite à cultura musical da história americana e um reflexo musical tão atemporal quanto urgente.

Ao ouvir “Anarchist Gospel”, somos colocados em um cruzamento daquelas estradas em que o presente e o passado se encontram, especialmente em um ponto de inflexão onde a música folk se funde com a atual consciência moderna. Sunny War não apenas toca guitarra como quem coloca o seu coração em seus ídolos, ela incorpora os fantasmas da América: cada acorde, uma história; cada letra, uma confissão ou um grito de guerra - ou até um grito anti-guerra como na canção “I Got No Fight”, uma das mais belas de "Anarchist Gospel".

É aqui que o evangelho do anarquista encontra seu púlpito: não na igreja, mas nas ruas, nos corações partidos e nas mentes questionadoras de quem vive e sobrevive em uma cultura ocidental americana. O trabalho de War é, em sua essência, um manifesto embalado em melodias, um relato nada óbvio contra a injustiça; é, sobretudo, um convite à introspecção.

Sunny War não pede permissão; ela toma o seu lugar de uma garota punk americana que viveu em Los Angeles, Detroit, Nashville e Denver, com uma presença que é tanto invasiva quanto íntima. Sua música, uma fusão de blues, punk, folk, é uma resposta aos tempos atuais que coloca uma ideia em destaque: o passado importa. E este álbum é um lembrete de que o folk não é apenas um gênero musical; é, ainda, um acontecimento vivo e parte da história americana, um canal através do qual a narrativa coletiva é tanto preservada quanto contestada. E como um exemplar de artista que se porta dessa maneira, War já foi, outrora, categórica: para ela, nunca houve um movimento revolucionário que não tenha sido acompanhado pela música.

Há momentos com cadências e melodias descontraídas em faixas como “No Reason” e “Swear To “Gawd” e há faixas como “Earth”, “Loves Death Bed” (talvez a minha preferida) e “Higher”, onde Sunny se apropria de guitarras fantasmagóricas e letras assombradas, se posicionando na linhagem dos trovadores sociais, ou seja, aqueles artistas cujas obras transcendem o entretenimento para se tornar um comentário, uma crítica, uma esperança. Como os grandes nomes que a precederam, War entende que a música pode ser tanto um refúgio quanto um campo de batalha, e em suas canções, a cantora luta, sara e inspira.

Anarchist Gospel” não é apenas um álbum com um fim em si mesmo, mas é uma peça que desafia tanto quanto encanta, que questiona tanto quanto responde. Sunny War, com sua guitarra e sua voz, escreve seu próprio evangelho, um evangelho de anarquia, de amor, de luta e, finalmente, de esperança. É, definitivamente, uma artista que você deveria ouvir.

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