O meritíssimo

Por J.L Rocha do Nascimento, em CONTOS

O meritíssimo

12 de Junho de 2020 às 03:27

A tartaruga australiana do promotor enquadrou-o em vários tipos. O meritíssimo ficou na dúvida entre condução coercitiva, prisão preventiva ou temporária.

Quando isso ocorria, costumava dirigir-se à biblioteca, repleta de manuais em capa dura, de onde retirava o terceiro volume (O terceiro livro dos fatos e ditos heroicos do Bom Pantagruel) da pentalogia “La vie de Gargantua et de Pantagruel”, de François Rabelais, que, dentre outras, narra a história de um juiz chamado Bridoye, famoso em toda a Europa por adotar um expediente exótico na hora de julgar os casos que lhe chegavam à mão: decidia pela sorte dos dados. Como sempre fazia, foi direto ao capítulo 40 e releu uma de suas histórias favoritas, aquela que, nos detalhes, contava como o juiz Bridoye, magistrado que viveu no século XVI, sua maior fonte de inspiração, decidia os processos através da sorte dos dados.

De acordo com a narrativa Rabelaisiana, o juiz Bridoye instaurava, instruía os processos, ouvindo as partes e as testemunhas, adotando todos os procedimentos legalmente previstos, em obediência ao devido processo legal, com uma diferença: na hora de decidir, joga a sorte e o destino das partes nos dados.

O curioso é que, por quarenta anos seguidos, assim decidiu sem jamais ter errado, tanto que ninguém impugnava suas decisões, a não ser pela última proferida, contra a qual uma das partes, insatisfeita, recorreu. Foi assim que o modo de julgar do célebre magistrado se tornou público e, por conta disso, ele próprio foi a julgamento por seus atos. Soube-se então que a explicação para o alto grau de acerto de Bridoye se dava, em verdade, pela interveniência da Providência Divina, que se manifestava através dos dados jogados por Bridoye, que, segundo consta, fora ungido para essa função por ser puro e bom.

Como conta Rabelais, Deus manifestava sua vontade, mas era Bridoye quem fazia justiça ao acaso quando jogava seus dados, o que permitiu intuir-se que ele era apenas o instrumento da justiça divina. Como então explicar um único erro divino num universo tão grande de decisões, essa a grande pergunta que se faziam todos aqueles que, de algum modo, foram afetados pelas decisões do magistrado.

Em verdade, soube-se ao final do julgamento, Deus, diferente de alguns tribunais que têm a prerrogativa de errar por último, não errara no derradeiro julgamento, Bridoye é que, em face da idade e com os olhos cansados, interpretou mal os sinais dos dados.

Resoluto, o meritíssimo fechou o livro, colocando-o de volta à estante, livremente convicto que sua hora de errar não chegara, se é que um dia iria chegar, afinal ele próprio era um Prometeu tardio: não desistira de ser deus.

Jogou as cartas e deu que era caso de preventiva, imediatamente decretada. O indiciado foi recolhido.

Ocorre que ele não era tão ortodoxo assim. Em situações excepcionais, cortejava outros métodos, sobretudo quando era tomado pelo espírito do também juiz Ângelo, personagem shakespeariano, de Medida por Medida. Quem já o leu, sabe que o personagem encarna, em momentos distintos, a figura de dois juízes.

Relembrando: o caso se passa nos anos 1600. Cláudio, um dos principais personagens, é pego em flagrante praticando fornicação, que pelas leis locais era tipificado como crime. É quando entra em cena a primeira versão do juiz Ângelo, que aplica rigorosamente a letra da lei e condena o jovem Cláudio à morte por um crime banal, dizendo que a lei o condenara, e não ele, o juiz. Sucede que Cláudio, ao receber a visita de sua irmã Isabela, suplica que a mesma interceda em seu favor. Ela consegue uma vaga na apertada agenda de Ângelo, oportunidade em que tenta persuadi-lo a suavizar a pena de Cláudio. Irredutível, Ângelo diz que Cláudio violou a lei, e por isso deve responder, daí a razão da pena capital, condenação que imporia, se fosse o caso, até mesmo a um parente seu, irmão, filho, pai ou mãe, afinal, ele, Ângelo, era um juiz escravo da lei.

No dia seguinte, Isabela retorna e insiste no pedido. Enquanto falava, ao cruzar delicadamente um generoso par de pernas, deixa à mostra, preso por uma corrente, o tornozelo do pé direito. Imediatamente, Ângelo se dá conta de que se trata de uma bela mulher. É quando, de repente, surge a figura do segundo juiz, aquele que julga de acordo com sua vontade. Cláudio seria poupado, desde que Isabela atendesse aos seus desejos. Isabela não esboça resistência e cede. Então, de escravo da lei, Ângelo se transforma no dono da lei e absolve Cláudio.

E foi assim que o condenado dessa história nem bem viu o sol nascer quadrado. Tão logo que pode, após protocolar uma enxurrada de papelada, sua advogada, decotada, debruçou-se sobre a mesa do excelentíssimo, perdido entre papéis (ainda havia celulose em abundância), jogos de paciência e metas a cumprir. Com a lupa numa mão e a caneta noutra, fez-lhe ver que na letra da lei havia uma brecha. Cofiando os ralos bigodes, o meritíssimo julgou que aquela poderia ser uma boa oportunidade para viver o seu dia de Ângelo.

Lisonjeado com as mesuras, o meritíssimo ponderou uma, ponderou duas, ponderou três vezes e, por fim, vomitou meia dúzia de latim antes do decreto final de soltura.

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