O Poeta do espanto

Por Márcio Barros, em OPINIÃO

O Poeta do espanto

03 de Fevereiro de 2017 às 03:50

Certa vez Ferreira Gullar foi abordado por alguém que o perguntou se ele era o famoso Poeta, ao que respondeu: “Às vezes”. A estória era contada por Gullar para ilustrar seu “conceito” de que ser poeta é um estado, não um ofício. Nesse ponto, aliás, o maranhense discordava de João Cabral de Melo Neto, para o qual o poema tinha que ser construído, talhado em pedra, artesanalmente. Trabalhado palavra por palavra. Para Gullar, o poema nasce do arrebatamento, da apreensão de um momento de maneira particular, como a cena do filho comendo uma tangerina, já vista tantas vezes, mas que de repente causa espanto:
“Esse cheiro que agora me embriaga e me inverte a vida num relance num relâmpago e me arrasta de bruços atropelado pela cotação do dólar.”
“A poesia nasce do espanto”, de algo que, em determinado momento, surpreende o poeta e que o leva à necessidade de transmitir aos outros a descoberta. Sobre essa necessidade, aliás, escreve Rilke, em cartas a um jovem poeta (em que aconselha um jovem admirador, aspirante a poeta):
‘Pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?" Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade.’
E assim nasce a arte. “A arte existe por que a vida não basta. A noite estrelada de Van Gogh é uma noite a mais dentre todas as possíveis”. Havia a necessidade de existir uma noite estrelada como a de Van Gogh. A vida fica bem mais rica e interessante com essa noite poética.
No final do ano passado fomos surpreendidos com a morte de Ferreira Gullar. Foi um baque. Perdemos o poeta, mas ao menos temos o conforto de saber que a vida é bem mais rica com sua poesia. O poeta (às vezes) criava cidades, homens, árvores e pássaros movido pelo espanto, e por uma necessidade premente de nos escrever, da qual construiu sua vida e enriqueceu a nossa. Tudo isso estará em cada um que leu ou ler sua poesia, não da mesma maneira, evidentemente:
"A cidade está no homem
mas não da mesma maneira
que um pássaro está numa árvore
não da mesma maneira que um pássaro
(a imagem dele)
está/va na água
e nem da mesma maneira
que o susto do pássaro
está no pássaro que eu escrevo
a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa
cada coisa está em outra
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma
a cidade não está no homem
do mesmo modo que em suas
quitandas praças e ruas"
(Poema Sujo)
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