O rei nu

Por Márcio Barros, em OPINIÃO

O rei nu

23 de Setembro de 2015 às 18:25

Caos econômico e político, crise de representatividade, conspirações, desperdício de dinheiro público, corrupção generalizada, lama, ... Apesar de o cenário parecer representar, de forma tão única e inequivocadamente, o Brasil contemporâneo, ele é um déjà vu sobre os mais de 2 mil anos da história de Paris, retratado de forma magistral no livro a história secreta de Paris de Andrew Hussey de 2011. 

Hussey lança um olhar iconoclasta sobre a cidade considerada berço da civilização ocidental. Como um típico flêuner que vagueia dos pontos turísticos tradicionais aos canais subterrâneos de esgoto, ele expõe as vísceras da metrópole ao longo do tempo. Lá encontra os artistas, cientistas e filósofos iluministas que traçaram os rumos da sociedade moderna, bem como os ladrões, vigaristas, prostitutas e déspotas que ajudaram a fazer capital francesa como ela é. 

Em meio a essas contradições, é inevitável notar a enorme semelhança com a história de tantos outros povos, principalmente em relação a suas vicissitudes: Durante uma invasão de normandos (ancestrais dos dinamarqueses), por exemplo, no século IX, o rei Carlos, o careca, subornou os invasores por "700 livres de prata" para que no lugar de Paris, pilhassem Borgonha. O suborno deu resultado, os piratas escandinavos invadiram a outra cidade francesa.

Sob o reinado de Felipe o Belo, no século XIII, Paris quebrou financeiramente (como aconteceria em tantas outras vezes), pois o rei era obcecado por construir monumentos faraônicos em homenagem a si mesmo. Para compensar o rombo nas finanças a resposta foi "confiscar riquezas privadas e cancelar suas próprias dívidas" (déjà vu?). François Villon, famoso poeta do século XV era notório ladrão e arruaceiro, como tantos outros estudantes da época.

Isso sem falar dos já conhecidos excessos absolutistas (que levaram à revolução francesa e ao terror) e das famigeradas pilhagens de Napoleão Bonaparte que tornaram o Louvre o mais imponente museu do mundo. 

Mas Hussey também joga um feixe de luz sobre as vielas obscuras da cidade e lá encontra o parisiense médio igualmente subornando, trapaceando e mentindo, para sobreviver ou simplesmente como forma de “arte”. Ao final da leitura, não há como não associar a narrativa à “página infeliz da nossa história” atual. Percebemos, então, que a sordidez na verdade é uma característica inerente à condição humana. O que é inclusive simbolizado na metáfora da maça de Adão e Eva, o primeiro caso “oficial” de suborno da história.

O Brasil e seus 500 anos de história e míseros 30 de democracia apenas segue o curso normal que tantos outros percorreram até consolidarem suas instituições. Não é que estamos mais sujos que há 50, 100 anos, a sujeira é que está mais visível, agora.

No ranking da transparência internacional (ONG alemã que avalia o grau de corrupção das nações há duas décadas) a Dinamarca é classificada como o país com os menores índices por vários anos seguidos. Segundo a mesma organização, os descendentes dos saqueadores escandinavos são também os mais transparentes. A relação não é mera coincidência: Os países mais transparentes (Dinamarca, Nova Zelândia e Suécia) são também os menos corruptos. A razão é obvia: se ninguém está vendo, porque não comer o fruto proibido?

Mas o processo é longo. Em 1660 o Rei Frederick III da Dinamarca estabeleceu o que seriam os primeiros rudimentos de transparência pública. Via decreto, foi assegurado que qualquer pessoa poderia fazer denúncias sobre abuso de poder. De lá pra cá, com o surgimento e amadurecimento da democracia no país, os mecanismos de publicidade das contas públicas só aumentaram. A lei que assegura o direito de acesso à informação a qualquer cidadão dinamarquês está em vigor desde 1970, já a do Brasil é de 2011. Estamos engatinhando, ainda.

Como Hamlet sentenciou: “há algo podre no reino da Dinamarca”. Na verdade, sempre houve. A diferença é que agora o “Rei está nu*”.

(*) Frase do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen. 

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