O senhor das moscas

Por Márcio Barros, em OPINIÃO

O senhor das moscas

21 de Janeiro de 2015 às 13:49

Em fevereiro de 1993, na cinzenta Liverpool, Jon Venables e Robert Thompson raptaram, espancaram e torturaram até a morte o menino James Bulger de dois anos e, em seguida, jogaram seu minúsculo corpo nos trilhos de um trem que o dilacerou por completo. Vanables e Thompson tinham 10 anos na época. O crime chocou a Inglaterra e o resto do mundo. Na época reacenderam-se velhas discussões sobre o rumo que a civilização ocidental estaria tomando. Teses que defendiam que o “sociedade moderna”, o “materialismo desenfreado” e outras questões abstratas seriam catalisadores do que há de pior nos seres humanos ganharam mais um argumento a favor.

Durante a segunda guerra mundial, o nazismo lançaria uma pá de cal sobre a utopia iluminista de que o amplo domínio da razão finalmente livraria a humanidade da barbárie e da tirania. O nazismo, utilizando dos maiores artifícios produzidos pela razão até então, proporcionou as piores atrocidades de que se tem notícia. De lá pra cá a teoria politicamente correta do Bom Selvagem de Rousseau só ganhou força. Segundo ela, o homem é bom por natureza, a sociedade o corrompe e escraviza tornando-o mau. O homem, quando livre dos grilhões civilizatórios, viveria finalmente em seu estado natural de harmonia e bondade.

William Golding, autor de Senhor das Moscas, foi militar combatente da segunda grande guerra. Presenciou bem de perto os maiores horrores que a civilização ocidental era capaz de gerar. Provavelmente depois dos cogumelos atômicos e toda a carnificina do Nazismo, Golding percebeu, ao contrário de Rousseau, que o homem na verdade é mau por essência, independente do ambiente ao redor. Parecia compartilhar da visão trágica de Santo Agostinho:

“O mal não é ser, mas privação de ser, como a obscuridade é ausência de luz. Tal privação é imprescindível em todo ser que não seja Deus, enquanto criado, limitado”.

O mal, portanto, seria uma “atrofia moral” comum a todos nós. Em alguns, mais evidenciada em outros menos. O caso extremo seria a “sociopatia”  ou “distúrbio da personalidade antisocial” ( provavelmente o caso de Jon Venables e Robert Thompson) em que, segundo a neurociência, o indivíduo teria resposta fisiológica fraca, no sistema nervoso autônomo, a palavras , imagens e situações de alto apelo emocional. O sociopata já nasceria com uma espécie de “deficiência fisiológica” que o impediria de sentir culpa, remorso, compaixão, etc.

O senhor das Moscas narra a estória de um grupo de garotos que são os únicos sobreviventes de um acidente aéreo em uma ilha paradisíaca e remota. Nenhum adulto escapa. As crianças encontram-se nas condições ideais, segundo a teoria de Rousseau: livres das amarras da sociedade moderna tinham apenas as leis da natureza como autoridade.  As primeiras semanas na ilha transcorrem como uma espécie de colônia de férias. Sem horários, regras nem adultos para importunar, os meninos passam os dias gozando das delícias do paraíso tropical.

 Mas, eles percebem que até um estado de perfeição necessita de algumas regras e decidem escolher um líder para os guiar dali pra frente. A liderança natural surge na figura do carismático Ralph, embora o instintivo e agressivo Jack, caçador nato, não aceite a escolha de bom grado. À medida que os meninos vão se conhecendo melhor, a fina camada de harmonia entre o grupo vai se rompendo, como que se confirmasse o aforismo de Millôr Fernandes: “Como são admiráveis as pessoas que mal conhecemos!”

Com o tempo as diferenças de personalidade e os interesses vão se colidindo e o convívio em grupo vai se tornando cada vez mais complicado, até o ponto de ocorrer uma ruptura.  O grupo de crianças passa então a reproduzir inconscientemente os mesmos vícios da “falida sociedade ocidental moderna”: Disputa de poder, agressividade, conflitos de egos, manipulação, .. até desembocar finalmente na selvageria completa.

A marcha rumo à decadência é conduzida principalmente por Jack. Apesar de todos carregarem a semente do mal, ele parece ser, de longe, quem mais a cultivou. Suas atitudes assemelham-se às de Jon Venables, Robert Thompson, Adolph Hitler, Stalin e tantos outros sociopatas para os quais respeito ao próximo, convívio em sociedade, perdão são apenas formalidades inúteis que por vezes obstam a satisfação de mórbidos desejos.

O Senhor das Moscas inicialmente foi recusado por várias editoras por seu pessimismo em relação à condição humana e pela ousadia em propor que algumas pessoas teriam o mal como essência, independente das condições em que vivem.  Mas a neurociência, Santo Agostinho, crianças homicidas e o Estado Islâmico estão aí para corroborar a tese de Golding.

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