ÓRFÃOS DE ESTADO (Leviatã, 2014)

Por Wilson Araújo, em CINEMA

ÓRFÃOS DE ESTADO (Leviatã, 2014)

17 de Fevereiro de 2015 às 00:00

 
 
Austero, Kolia bebe mais uma dose cavalar da vodka mais forte. Vê refletida na névoa a imagem de um homem só. Ofusca-se pelo barulho sem volume e pelo horizonte sem destino. Enclausurado em seu próprio artifício, vê-se abandonado. E chora.
 
Dias antes, seu ímpeto parecia outro. Era voraz. Ao lado do advogado, parceiro e amigo Dimitriy Seleznyov, partilhou momentos de duplo vínculo. Sabia, ao certo, aonde queria chegar. Uma casa no campo, uma oficina, Lilya e o filho, Roman, cigarros; tudo isso, enfim, parecia o constructo de uma vida sem soberba. A subserviência a um poder maior, entretanto, o impediu de manter-se focado. E, por isso, deslocava-se, buscava outros rumos, lutava para não ser expulso de sua simples morada. Não se deixou apequenar em instantes e viu tudo aquilo que era de seu afeto virar enormes minúcias, fragmentos sem pedaço, cinzas mal cremadas.
 
Viu Dimitriy Seleznyov agigantar-se em um célere discurso do Direito diante de Vadim Shelevyat, o prefeito contumaz que só queria mais rublos de poder transpostos em hectares. E comemorou com soberba, com vodka, com disparos. Atirou nas montanhas, atingiu até poderosos russos mesclados em fotos de papel. E foi atingido. O projétil que o afetou não era de chumbo, não faiscava nem tinha barulho, não deixava marcas vivazes ou orifício de entrada. Mas vinha do mesmo Dimitriy que o defendeu com tamanho brilho; o mesmo com quem dividia uma foto no mural de retratos; o mesmo que desconcertava Lilya na mesma mesa de jantar que ninguém reparava.
 
Ouviu o choro da esposa e palpitou os mais dissonantes sentimentos. Os sentidos tornaram-se confusos. Esvaiu-se em lágrimas. Talvez fosse ‘o ódio que ele sentia, e a compaixão que ele dizia que sentia’, que estavam ali, lado a lado, fazendo parte dele próprio e se desabrochando ao mesmo tempo, de uma forma complexa e incompreensível. Porque, ali mesmo, enquanto ébrio se tornava, conseguia ver, ouvir, sentir o barulho de estar sendo calorosamente destruído.
 
E sentiu Roman distante. Sabia que o filho chorava. Sabia da dor que ele sentia. Sabia que não mais o veria. Presos, ambos ficariam. Frutos do estado de espírito e do Estado de ordem, ambos estariam para sempre em lados incrivelmente distantes.
 

(este texto é um corte transversal que tem como pano de fundo a obra Leviatã, de Andrey Zvyagintsev)

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