ROMA (México, 2018)

Por Leandro Lages, em CINEMA

ROMA (México, 2018)

24 de Fevereiro de 2019 às 22:49

Brasília, 27 de março de 2013. Naquele dia eu estava na capital federal resolvendo pendências jurídicas da minha advocacia. Por um motivo que não me recordo, precisei ir ao Senado Federal tratar com algum parlamentar a respeito de uma ação judicial.

Enquanto saía do plenário, me chamou a atenção um discurso emocionado da deputada Benedita da Silva, comemorando a aprovação de uma lei que concedia igualdade de direitos às empregadas domésticas. A deputada era filha de uma doméstica e havia trabalhado na mesma função desde os dez anos.

Parei por um instante e, enquanto assistia ao vivo àquele discurso, refleti que presenciava um momento histórico, talvez a eliminação de um dos últimos resquícios da cultura escravocrata que ainda impregnava o país.

Até aquela data, as empregadas domésticas não possuíam os mesmos direitos dos demais trabalhadores, como o direito a uma jornada de trabalho mínima, seguro-desemprego, FGTS, dentre outros.

Não havia justificativa jurídica para tal discriminação. Na verdade, as explicações estavam no contexto histórico social. Vergonhosamente, o Brasil foi o último país das Américas e um dos últimos do mundo a abolir a escravidão.

Mesmo com o fim da escravidão, a cultura escravocrata persistiu. Afinal, não se modifica uma cultura de imediato com leis. Apenas com o tempo e muita educação se alteraram os padrões culturais em uma sociedade.

O regime de trabalho das empregadas domésticas representava um indício da nossa cultura escravocrata. Era comum a existência de domésticas que residiam na casa dos patrões a vida inteira, a ponto de integrarem o núcleo familiar.

Alguns filhos passavam mais tempo com as domésticas do que com os pais. Algumas eram bem tratadas, outras não tinham a mesma sorte e muitas vezes trabalhavam desde criança em troca de alimentação, moradia e vestuário.

O filme mexicano ROMA possui essa temática como pano de fundo ilustrativo. A narrativa se passa no ano de 1970, no bairro mexicano que dá nome ao filme. Retrata o cotidiano de uma família de classe média e a rotina da emprega doméstica Cleo.

Pode-se dizer que se trata de um filme fotográfico, com excelentes angulações destacando a rotina da família. O diretor Alfonso Cuarón abusa graciosamente das cenas fotográficas, o que torna o filme uma obra de arte em preto e branco.

Em um determinado momento, Cleo deita-se com um dos filhos do casal, cabeça com cabeça, em sentido oposto, enquanto brincam de se sentirem mortos. De olhos fechados por algum tempo, ela reflete: “gostei da sensação de me sentir morta”. Talvez por conseguir um minuto de descanso naquele momento!

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Em outro instante, o velho Landau da família, dirigido pelo pai, entra na garagem apertada, lentamente, lataria brilhando, possante motor ligado, ajustando-se a cada um dos espaços, desviando-se das colunas. Cada momento retratado com perfeição para ilustrar a chegada da autoridade paterna em casa.

A tudo isso Cleo assiste como uma sombra, sendo a atriz principal de um filme no qual se porta como a coadjuvante doméstica do lar.

Ela prepara a comida, limpa a casa, lava roupas, cuida do cachorro e dos filhos, acorda as crianças, além de alimenta-las, auxiliar no banho, levar e trazer da escola e coloca-las para dormir. Faz o supermercado, serve de confidente à patroa e ainda consegue tempo para se divertir.

Seu maior temor é perder o emprego, por isso se comporta com a fidelidade submissa de um cordeiro.

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As crianças a tratam com carinho, a patroa desenvolve um relacionamento de cumplicidade e o patrão se refere a ela apenas para reclamar de algo. E Cleo pouco fala, atua em silêncio ou com diálogos monossilábicos, típico de quem se identifica como inferior naquela relação doméstica.

Mesmo quando passa por uma situação delicada que a enfraquece, precisando de repouso, ainda assim é convocada para ir com a família a uma viagem à praia. Para ela será desgastante, pois terá muito trabalho durante a passeio, mas a família se porta como se a viagem também fosse relaxante para Cleo.

E assim agem por senti-la não como uma empregada, mas como alguém integrante da família. No entanto se trata de um sentimento que se aproxima mais daquele que se nutre pelos animais domésticos, com a sutil diferença de que animais domésticos não trabalham, já algumas domésticas trabalhavam como animais escravizados.

Seis anos após a aprovação da lei das domésticas no Brasil, impossível não lembrar do assunto ao assistir ao filme Roma e recordar aquele momento em que presenciei o discurso de Benedita da Silva, no Senado Federal.

Talvez por isso o filme tenha me cativado, o que pode tornar a minha opinião um tanto suspeita e parcial...

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