Sinto Muito

Por Márcio Barros, em CRÔNICA

Sinto Muito

07 de Dezembro de 2018 às 16:18

A diferença entre um poeta e um louco é que o poeta
sabe que é louco... Porque a poesia é uma loucura lúcida.

Mario Quintana

Em determinado momento do documentário Loki Arnaldo Baptista (2008), a coreógrafa Regina Miranda, que dirigia uma peça musicada por Arnaldo nos anos 70, declara que, ao final de um dos ensaios mais intensos, ele a questiona perturbado: “Como você aguenta? Essas pessoas dançando, é como se passassem por todos os meus poros, me esburacando”. Meses depois Arnaldo se atira do terceiro andar de uma clínica psiquiátrica de São Paulo, onde estava internado.

No filme Torquato Neto - todas as horas do fim (2017),há um trecho do diário do poeta, quando da sua internação no Engenho de Dentro, lido pelo ator Jesuíta Barbosa, em que diz: “lá fora, os piores dias são todos, principalmente quando me custam vinte e quatro horas de medo, e solidão e monólogos. por isso é difícil participar da contagem regressiva e esperar por domingo, segunda, terça etc: a ilusão dos que não compreendem que o número zero é o princípio e o fim de tudo e que a vida é um processo linear que ao mesmo tempo em que vai, está voltando.” Um ano mais tarde, Torquato liga o gás e rompe definitivamente o eterno processo de idas e vindas.

O.G. Rego de Carvalho, em um depoimento sobre a composição de Rio Subterrâneo, sua obra mais importante, afirmou: "Tudo o que de verdadeiramente importante eu tinha dentro de mim eu externei nesse livro (...) Eu adoeci ao encerrar a última linha de Rio Subterrâneo. Com estafa física e mental, deixei o Rio e vim para Teresina descansar. Aqui, em tratamento, e com o apoio da família, consegui me recuperar. Mas todas as sensações que uma pessoa tem a caminho de um esgotamento nervoso estão descritas, com absoluta sinceridade, na minha obra[...].Poderia ter conservado a saúde e escrito mais e mais livros, se minha paixão por Rio Subterrâneo não me tivesse levado à doença e à depressão”.

Muito além dos velhos estereótipos do artista com distúrbios mentais, o que mais chama atenção nos depoimentos acima são as experiências extremadas de pessoas com sensibilidade ultra-aguçada em rota de colisão com a banalidade do real e sua capacidade e coragem para verter em arte todo o caos brotante dos recônditos mais obscuros da alma.

Não sou apologista de um tempo caduco. Acredito que toda época produza seus artistas de gênio, antenas do tempo que só serão compreendidos anos, décadas adiante. Aprecio muito do que se faz hoje. Percebo que muitos desses artistas já estão entre nós. Mas sinto falta dessas experiências mais viscerais e honestas, hediondamente honestas, principalmente numa época em que revelamos ao mundo tão somente uma selfie envernizada do que somos, enquanto as chagas doloridas da nossa verdadeira essência expomos apenas às quatro paredes do escritório do analista ou de uma clínica psiquiátrica. Uma pena, pois como diria Torquato: Quem não se arrisca não pode berrar. Sinto muito!

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