Um clarão dentro da noite

Por Leandro Lages, em LIVROS

Um clarão dentro da noite

12 de Junho de 2019 às 02:49

Após ler “Um clarão dentro da noite”, livro de contos de J. L. Rocha do Nascimento, integrante do blog de escritos diversos Confraria Tarântula, fiquei a imaginar como seria a adaptação dos seus contos em outras áreas da arte, como cinema e HQs.

 

Não arriscarei apontar o meu conto preferido, tanto que iniciarei de forma aleatória e a partir dos escritos que relatam uma Teresina de tempos antigos, onde as crianças ainda brincavam nas ruas sem as preocupações que a modernidade fez surgir.

 

A Teresina nostálgica surge nos contos “Pelo retrovisor”, “Minha tia e o pão-de-açúcar de algodão-doce” e “A outra”. Arrisco dizer que o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho extrairia vários elementos outrora explorados em seus filmes urbanos “Aquarius” e “O som ao redor”.

 

Em “Pelo retrovisor” talvez ele destacasse a velha Rural com a lataria e o volante brilhando, o motorista Panta ensinando o garoto a dirigir e a passar as marchas, precisando deslizar o seu corpo pequeno pelo banco para pisar na embreagem.

 

No conto “Minha tia e o pão-de-açúcar de algodão-doce” o diretor ressaltaria a metódica habilidade do vendedor de algodão-doce ao enrolar o produto no palito, enquanto os garotos aguardavam ansiosos para comer.

 

E inúmeras seriam as tomadas sobre a região próxima à antiga Rua do Barrocão, no conto “A outra”, explorando a vivência das crianças, a mudança de casa do protagonista do conto, os garotos espiando a irmã do Zezinho e a cena do seu Benezin atravessando a lama com cuidado para não sujar a bicicleta.

 

Kleber Mendonça Filho também se sentiria bem à vontade de filmar o conto “Ela, o menino e as aventuras do Tarzan”, mas penso que ficaria mais apropriado às lentes de Woody Allen, em especial pela cena da prostituta Violeta desfilando gracejos na Rua Paisandu e o seu diálogo com o garoto que lia a revista do Tarzan, no botequim, ao som da gutural voz de Evaldo Braga cantando “Sorria, sorria”, no vinil.

 

Também caberia à veia satírica de Woody Allen dirigir o conto do personagem que casou com a sua própria televisão, em “Novela liberada para este horário” ou então o tenso momento do casal de “Rick e Ilsa sempre terão Paris para lembrar”, um relato em dois momentos que finalizaria com a melodia de “As time goes by” enquanto sobem os créditos e ela caminha sozinha por alguma rua de Manhattan refletindo, quem sabe, sobre a última viagem a Paris (sim, seria a fase NY de Allen).

 

A atmosfera surreal e onírica de “Nos braços de Sheherazade” talvez não comportasse nos limites imaginativos do cinema, razão pela qual penso que o quadrinista Neil Gaiman, de Sandman, saberia explorar melhor. E se eu pudesse exigir, Sheherazade seria desenhada por Milo Manara. Também Gaiman desenvolveria todo o delírio de “O corvo”, no qual a ave se aloja no cérebro do protagonista, devora os seus neurônios e lhe deixa em um bipolar estado de apatia e euforia.

 

Voltando ao cinema, mas ainda no clima de fantasia, o polêmico diretor grego Yorgos Lanthimos abraçaria o conto “Esopiana” elaborando toda uma trama com um lobo ou raposa em pele de cordeiro para ilustrar, de forma crua, o real significado da palavra “infâmia”. O grego tem cacife para isso depois do que fez em “The lobster”.

 

E por falar em diretor polêmico, quem mais poderia conduzir a película da convulsão psicótica de “O testemunho”? Ou o diálogo terminal de “Falando com ela”, com o teto mudando de cor à medida que as falas evoluem tensas? Não penso em outro diretor que não seja o dinamarquês Lars Von Trier.

 

E como diálogos entre figuras caricatas são a marca registrada dos Irmãos Coen, deixaria para eles “No ninho dos poetas” a fim de que equilibrassem a troca de palavras entre o cliente e o dono do bar em um sarau de poetas retratado no fim (ou começo?) do livro.

 

Para os contos leves, mas ainda assim densos, as charges e tiras de Angeli ilustrariam “Mr. Marlboro”, sobre o fumante que, no auge do desespero por um cigarro, resolve fumar a si mesmo. O cartunista também desenharia o conto político “O discurso”, difícil de falar sem entregar o final, por isso nada comentarei a respeito.

 

Alguns contos lembram o culto cinema argentino, que nos legou os excelentes “Neve negra”, “O clã” e “Relatos selvagens”, filmes cujos diretores também poderiam modelar os contos “Até quando me levarão flores”, “O quarto dos fundos” e “Margaridas vermelhas”, sendo que neste último já consigo ver Ricardo Darín escarrando sangue.

 

E sangue não faltaria em “A lenda”, sobre o personagem Zé Amaro e todos os ingredientes que Quentin Tarantino costuma extravasar em seus filmes: tortura, vingança, humor negro, redenção, cenas improváveis e muito sangue no embate travado na Serra do Papagaio.

 

Tarantino também arrebentaria com “Folha seca”, sobre um sociopata e sua compulsão por limpar as ruas chutando tudo que ele considera ser um lixo: animais, mendigos, prostitutas, corruptos, socialites e afins. Mas eu deixaria Tarantino de lado, pois estas cenas caberiam bem melhor em mais um relato de Sin City, série noir do quadrinista Frank Miller. Pena que na HQ não daria para ouvir o tinir do sino da música “Black dog”. Também vejo Miller como o mais indicado para ilustrar “Jim Morrison sobre aos céus”.

 

Na mesma toada, o ambiente fantasioso das HQs acolheria o conto “O anjo vingador”, sobre um serial killer que alveja seus alvos virtualmente em programas de TV. O potencial criativo do mago inglês Alan Moore conseguiria demonstrar com propriedade as motivações do assassino virtual que busca inspiração a partir do versículo bíblico (Ez 25:7): “eu os destruirei e vocês saberão que eu sou o senhor”. A Moore também caberia quadrinizar o surreal e místico “Heptagrama”.

 

E, por fim, o primeiro conto do livro, “Um clarão dentro da noite”, sobre o pânico de uma família diante de uma tormenta que se aproxima com relâmpagos e trovões assustadores. Acredito que este conto contribuiria para o triunfal retorno de um diretor que errou em muitos de seus trabalhos desde “Sexto sentido”, mas mereceria uma redenção: M. Night Shyamalan. Ele teria um excelente material em mãos, sem desculpas para novos erros.

 

Após a leitura da obra de J. L. Rocha do Nascimento fica o sentimento gratificante de saber que ainda há uma chama de boa escrita para além da escuridão das redes sociais e das rasas letras da auto-ajuda. E que venham os próximos contos...

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