
20 de Outubro de 2025 às 12:28
Era um alvorecer morno em Juazeiro, daqueles em que o sol se espreguiça devagar nas margens calmas do rio São Francisco. Quem passasse pela rua de terra, encostada às casas caiadas, poderia ouvir um som quase imperceptível — um clique leve, um sopro rítmico, um chiado preso entre o silêncio. João Gilberto dizia que foi esse som, vindo de um canto humilde, que o inspirou.
Vadu Corta-Passe — Waldomiro Custódio da Cunha — era o vizinho de João nos anos de juventude. Seu apelido, pela lenda local, vinha da pouca habilidade com a bola: quando chegava no pé de Vadu, a sequência era invariavelmente interrompida. Daí, o “Corta Passe”.
Mas não é seu jogo no campo que importa aqui — e sim o som que ele fazia com uma caixinha de fósforo. João contava que Vadu batucava com tamanha delicadeza numa caixinha de fósforo, no compasso miúdo do seu gesto cotidiano, que ficou para ele a marca mínima da musicalidade: um pulso quebrado, um micro-compasso, uma batida interior. Foi ouvindo Vadu — “com a sua caixinha de fósforo” — que João teria descoberto o jeito de fazer música que depois se ransformou na batida da bossa nova.
Na crônica da música brasileira, há muitos santos fundadores. Tom Jobim compôs melodias que viajaram o mundo. Vinícius, com suas letras leves e densas, deu voz ao sonho. Mas João Gilberto fez a alquimia silenciosa: a voz quase falada, o violão que canta, o ritmo que flutua. E entre as fontes dessa alquimia, ele próprio guardava o segredo de Vadu.
Imaginemos a cena: Vadu, sentado num banco de calçada, uma caixinha de fósforo na mão — não para incêndiar nada, mas para batucar o invisível. O som — mínimo, sutil, parecido com uma respiração rítmica — ecoa no ar seco da manhã baiana.
João, por acaso ou instinto, ouve. Para de caminhar. Observa. O compasso se instala em sua memória — e dali nasce a “batida diferente” que fugiria do samba-canção, que respiraria no interstício entre nota e silêncio.
A batalha de atribuir “quem inventou a bossa nova” sempre será incerta: estilo híbrido, gesto coletivo, convergência de gente e lugar. Mas é justo dizer que João Gilberto, ao apontar Vadu como fonte, relançava no Brasil a ideia de que a arte pode nascer do gesto menor, da pulsação que ninguém percebe.
É possível que muitos historiadores — os sérios — levantem objeções: será que Vadu bateu exatamente como João tocou depois? Será que a casualidade da lembrança virou mito? Talvez sim. Mas, para quem crê no mistério da criação, importa que, na memória de João, havia um som: o som de Vadu Corta-Passe, rimando com uma caixinha de fósforo e um sonho de música nova.
E assim seguimos, ouvindo no violão de João, no sussurro da voz, um eco distante daquele batucar miúdo em Juazeiro. Vadu, o homem invisível da gênese, permanece entre a lenda e o suspiro — mas João, ao apontá-lo, nos deu a porta: ouvir com atenção aquilo que quase não se ouve.