Vale Abraão (Portugal, 1993)

Por Diego de Montalvão, em CINEMA

Vale Abraão (Portugal, 1993)

20 de Fevereiro de 2014 às 19:29

Em Vale Abraão (1993), adaptação do livro homônimo de Agustina Bessa-Luís, Manoel de Oliveira faz uma releitura de Madame Bovary, do escritor Gustave Flaubert, romance que no século XIX inaugurou a corrente literária do realismo.  

Na versão de Manoel de Oliveira, o cenário da história original é transposto para uma pequena vila no norte de Portugal, pós-revolução dos Cravos. Nela, o cineasta aborda a beleza ameaçadora de Ema (Leonor Silveira) como pretexto para discutir algumas questões existenciais, tais como amor, traição, culpa e redenção. As feições irresistíveis da moça não são tomadas como dádiva, mas norteadora de seu destino.  Ema, jovem de beleza marcante, é criada sob o olhar ríspido e claustrofóbico de seu pai. A protagonista até então nunca ira além da quinta da família. Quando se casa com Carlos Paiva (Luís Miguel Cintra), médico e lavrador, Ema enxerga a possibilidade de dar novo sentido a sua existência.

            Se Deus criou a mulher, a maldade então encontra terreno fértil, pelo menos sob a ótica de Manoel Oliveira. Se Ema tem um defeito físico em sua perna esquerda, também manqueja no caráter: “A formosura precisa de ter um aviso nela, para a salvação dos homens” – observa o narrador, ao ponto em que a protagonista inicia seus relacionamentos extraconjugais. Justificada pela infelicidade em seu casamento, a psique ambígua da jovem, ao mesmo tempo triste e ambiciosa, tem combustível para ousar nos relacionamentos e experimentar todas as vertentes que o amor pode oferecer.   

             Mas o prazer de ser tratada como objeto de desejo faz Ema atravessar os limites que não são aceitos ao papel da mulher. O personagem Pedro Luminares (Luís Lima Barreto) a repreende: “Não se nasce homem ou mulher, aprende-se.” Essa barreira que Ema transpõe, de ceder a seus impulsos, faz o destino virar-se contra ela de maneira implacável. Neste ensejo, a obra compartilha a idéia de Freud em Mal-estar na civilização (1930), onde o autor defende que o ser humano está fadado a uma felicidade incompleta, ou a uma tristeza permanente, à medida que tem de se negar a seguir suas vontades, principalmente aquelas situadas em âmbito sexual, para viver em sociedade. O homem se protege do homem ao tempo que não se rende a esses impulsos e, desta forma, mantém viva a raça humana. Na visão de Freud, o homem já nasce fracassado devido a esta impotência inata que sela seu próprio destino. Ema carrega esse sentimento incômodo de inadequação do ser, pois ela mesma se define: “Eu sou um estado de alma em balouço”.

A película tem um cuidado primoroso. Os planos, embora longos, parecem pinturas. Se a câmera, quase sempre imóvel, está em desacordo com o dinamismo dos filmes atuais, presenteia com enquadramentos próximos à perfeição. Em certos momentos, a tristeza do olhar vazio e perdido dos personagens é capaz de atravessar a tela e tocar fundo o telespectador.

Vale Abraão é narrado em terceira pessoa, o que prende a atenção. Porém mais onisciente que a voz over  é o personagem Pedro Luminares que, amiúde, dá pistas sobre a personalidade de Ema. Pelo fato da jovem compartilhar o mesmo prenome do original de Gustave Flaubert, a mesma fica conhecida como Bovarynha pelos moradores da cidade. Ema rejeita o termo, e com razão, pois a persona Paiva se mostra mais ambígua e complexa que a persona Bovary.

Manoel de Oliveira constrói excelentes diálogos. O texto se encaixa com perfeição. Todas as discussões têm caráter filosófico, além de extremamente poéticas. Algumas passagens são características do cinema de Manoel Oliveira, como o episódio onde o velho Semblano se apresenta a Ema em tom jocoso, ou quando o presidente da polícia local conta uma anedota após um jantar.

Enfim, Vale Abraão é um filme bastante atual. O fato de ser considerado por muitos críticos o melhor filme do cinema português, também dirigido pelo maior cineasta advindo da terra de Os Lusíadas, é suficiente para torná-lo filme obrigatório, senão na coleção, pelo menos na memória de todo amante da sétima arte.

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