Venda de voto

Por Leandro Lages, em CONTOS

Venda de voto

05 de Outubro de 2018 às 21:27

- Deputado, só tem mais dois para atender.

- Manda entrar os dois juntos, já estamos atrasados para o comício.

Foram quase 600 km percorridos em péssimas rodovias até chegar àquela cidadela de 2000 habitantes e infraestrutura precária. A reta final da campanha eleitoral já havia me arruinado financeiramente e a minha paciência também estava em vias de explodir.

A eleição para o primeiro mandato fora mais tranquila, muitas promessas lançadas no estilo cheque pré-datado, prometer agora e pagar depois, algumas sustadas após o resultado das urnas. Mas a campanha de reeleição era diferente e mais difícil, impossível levar só na base da promessa, não dava mais para prometer e pagar somente se eleito fosse.

Os pedidos dos eleitores, pagos à vista, eram os mais variados possíveis, desde o dinheiro em espécie para pagar alguma dívida real ou fictícia, passando por material de construção, medicamentos, tratamento de saúde, consulta médica, passagens aérea ou rodoviária, prestações em atraso, conta de água ou luz, cesta básica, peça de carro ou moto, instrumento musical, material esportivo, caixa de cerveja, cartões de bingo ou rifa, enfim, esses eram os mais comuns. Já me pediram até droga, neguei o pedido. Ainda tenho meus limites morais. Não me recordo de ninguém pedindo um livro, o que eu pagaria com grande satisfação.

Enquanto refletia sobre isso, aguardava os dois últimos eleitores que entrariam na sala, após uma longa tarde ouvindo e atendendo os mais diversos pedidos.

A porta se abre e antes mesmo de saber quem adentra, armo o largo e fixo sorriso de sempre, logo desmanchado ao perceber que se tratava do assessor encarregado da triagem dos eleitores.

- Deputado, vai entrar só um agora, o outro disse que prefere em particular.

Aceno afirmativamente com cabeça e ele mantém a porta aberta o suficiente para entrar um rapaz de pele negra, estatura baixa e de uma magreza ressaltada mais ainda por trajar uma camisa de malha alguns números acima da sua medida.

Levantei da cadeira recebendo-o com um sorriso no rosto enquanto apertava com firmeza a sua mão fria e suada.

– Como vai, meu camarada, em que posso ajudá-lo?

Ele sentou na cadeira de plástico em frente à minha mesa. Com a cabeça um pouco reclinada para baixo, como a demonstrar que se sentia inferior, me fitou sério com olhos fundos e tristes, respondendo com a boca semicerrada da qual saiu uma voz abafada e contida:

- Deputado, só queria que o senhor me desse um sorriso.

Levantei sorrindo para abraça-lo, aliviado por aquele pedido sem valor material.

- Obrigado, amigo, vir aqui sempre me traz alegrias.

Senti que a minha reação não fora correspondida.

- Não é isso, deputado, o senhor não entendeu.

- ???

- Eu não posso sorrir...

- ???

Percebendo que não se fazia entender e nem sabia como explicar o problema, levou as duas mãos aos lábios e os puxou ao máximo, o lábio superior para cima, o inferior para baixo. Mantendo a mandíbula cerrada exibiu uma cavidade bucal escura e vazia, órfã de dentes. Permaneceu assim até perceber que, finalmente, eu compreendera o seu pedido.

- É isso, deputado, eu não posso sorrir, tenho vergonha, me ajude.

- Amigo, não se preocupe, vamos resolver isso, e na próxima vez que eu vier por aqui gostaria que me recebesse com um belo sorriso.

Ele tentou esboçar um sorriso de agradecimento, mas logo cerrou os lábios e se despediu balançando a cabeça como a concordar comigo. Antes de fechar a porta lançou um olhar firme em minha direção. Os vários anos de vivência política-eleitoral permitiram que eu confirmasse que aquele olhar exprimia não só a certeza de que ele confiara em minha promessa, como também a convicção de que votaria em mim.

Enquanto ainda refletia a respeito da forma peculiar como aquele cidadão me pedira uma dentadura, a porta se abriu e a voz do assessor anuncia:

- Deputado, vai entrando o último.

Aguardei em pé e com o mesmo sorriso no rosto. Ao entrar, ele mesmo cuidou de fechar a porta, forçando de leve o trinco como a se certificar de que estava realmente fechada.

Entrou um pouco apressado e, sem me fitar, dirigiu-se à cadeira esfregando as mãos na calça marrom e suja. O rapaz aparentava algo em torno de 30 anos. Cabelo despenteado e seco, pele queimada pelo sol, barba por fazer, camisa de tecido semiaberta e amassada. O odor que trazia evidenciava não só a falta de água e sabão no corpo, mas também que estava bebendo sem parar por alguns dias e noites, talvez intervalando os goles de álcool com breves cochilos em alguma mesa de bar, na sarjeta ou em bancos da praça.

Repeti a saudação de sempre, tantas vezes falada naquela tarde:

– Como vai, meu camarada, em que posso ajudá-lo?

Ele permaneceu sentado, sem me olhar, as mãos metidas entre as pernas que balançavam impacientes. Parecia tomar coragem para falar, até que me olhou nos olhos para ter a certeza de que estava recebendo a atenção devida, baixou a cabeça olhando para o lado e falou rápido:

- Deputado, a minha situação não é boa.

- Imagino, amigo, estou aqui para ajudá-lo no que for possível.

- Preciso que o senhor me faça um benefício.

- ....

- Não sei nem como falar.

- Não se acanhe, fale rapaz!

Após mais alguns segundos na mesma posição, cabeça baixa, olhando para lado e ainda a agitar as pernas impacientes, exprimiu o que lhe angustiava:

- Faz sete meses que não deito com uma mulher, deputado, estou a ponto de fazer alguma bobagem.

-  Sério? E por que mesmo?

- Verdade, deputado, ninguém me quer, a mulherada daqui não olha pra mim.

- Nem as da zona?

- Mas lá é caro, não tenho dinheiro.

Sem poder demonstrar o quanto me assustara com aquele pedido inusitado, solicitei que aguardasse e saí da sala para tentar uma solução com o proprietário da casa que, gentilmente, havia transformado um dos cômodos em escritório para que eu pudesse atender os pretensos eleitores.

Ele conversava com algumas pessoas no quintal. Ao perceber que eu o chamava em particular, dirigiu-se às pressas ao meu encontro e conversamos em voz baixa.

- Onde fica a zona da cidade?

Ele me olhou com um misto de susto e desconfiança, e antes que me indagasse se eu gostaria de ir lá após o comício, emendei:

- É para o eleitor que acabou de entrar, o rapaz está precisado.

- Deputado, eu nunca fui lá – falou sem transmitir confiança na afirmação, levantando as mãos como a se proteger de uma acusação indefensável – mas meu irmão frequenta e conhece bem o recinto. Está lá fora aguardando o churrasco que o senhor mandou preparar.

O rapazote, não mais de 20 anos, olhar vivo e caminhado ligeiro, repassou o orçamento com a segurança de quem conhece a fundo o produto.

- Deputado, é 50 para a mulher e 10 para o quarto.

- Pois tome 100, o troco é seu. Leve o rapaz, apresente o ambiente a ele e tome uma cerveja enquanto espera.

- Pode deixar, só saio de lá depois que ele terminar o serviço.

- Recomende ao menos que ele tome um banho antes.

- Carece não, deputado, o pessoal lá é profissional.

Os dois saíram apressados e com a cumplicidade de quem já se conhece há bastante tempo. Nem sequer se despediram de mim. Fiquei imaginando que talvez aquele fosse um dos votos mais certos que eu teria naquela cidadezinha. Eleitor vende o voto por cada preço!

Conto de pura ficção, a semelhança de qualquer dos acontecimentos descritos com algum fato porventura ocorrido na realidade representa uma simples coincidência.

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